A cristalização poética do instante: o haicai.

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Haicai | Serendipitys
Haicai | Serendipitys

Hector Melo A.

Por Heloísa Guedes

“Da dama-da-noite
vem o vento perfumado
na mesa ao ar livre…” (Masuda Goga)

Goga e o haicai resgata a trajetória de Masuda Goga, imigrante japonês que disseminou no Brasil a poesia típica de sua terra natal: o  haicai.

O estereótipo de que os japoneses nascem apenas com o acentuado talento para o ramo das Ciências Exatas cai por terra quando se descobre que essa aptidão também abarca o campo poético. Embora ao longo da história do Japão uma parcela de suas instituições tenha absorvido gradualmente elementos externos, vindos principalmente da China, pode-se dizer que se algo permaneceu quase intocado por influências estrangeiras foi a literatura. A        habilidade japonesa de condensar percepções e exprimi-las de maneira quase pictória em formas poéticas conseguiu sobreviver desde o século XVII.

Tal capacidade apresenta-se em sua melhor forma em um tipo de poema clássico, conhecido como haicai. Com estrutura silábica e  vérsica fixas – três versos seguindo a ordem de cinco, sete e  cinco sílabas poéticas – o haicai tem como origem uma série de poemas coletivos interligados e, inicialmente, com sentido        cômico. Há pelo menos três séculos Matsuo Bashô imprimiu a eles um novo significado: a do instante poético. Isso implica na  formulação de poemas não-interligados e simples que, obedecendo  quase sempre a uma métrica fixa, retratam com concisão  experiências anteriores.

São experiências relacionadas à natureza e principalmente às estações do ano. O haicai clássico contém uma descrição temporal  ou espacial que situa o leitor em um período climático do ano. Sua composição deve suscitar em quem o lê emoções, imagens, sensações, lembranças, sonhos e desejos. Mas como um brasileiro  conseguirá compor um típico haicai vivendo em um país de estações não tanto demarcadas como as do Japão?

O instante e o haicai | SerendipitysEsse foi o entrave encontrado pelo imigrante nipônico Hidekazu Masuda, cujo nome literário adotado foi Masuda Goga. Veio ao Brasil com 15  anos e, aos 25, Goga foi discípulo do haicaísta Nenpuku Sato, até que adquirisse a mesma relevância de seu mestre e dasse  início à tarefa de ambientar o haicai ao clima e dinâmica brasileira. E é essa a história retomada em Goga e o Haicai – um sonho brasileiro, lançado em meados de 2011, ano  em que ele completaria 100 anos. Foram justamente esses  seguidores e admiradores de Goga os responsáveis pelo livro,  organizado por Teruko Oda, sua sobrinha, considerada a principal  haicaista contemporânea dessa modalidade de haicais.

A leitura permite conhecer referências da história do haicai no Brasil,  com os pioneiros do gênero no país e os grandes nomes de nossa literatura, como Millôr Fernandes e Paulo Leminski, que também  exploraram esse tipo de poesia em suas obras. E Goga foi o que  mais se sobressaiu nesse pioneirismo, conquistando notoriedade  na imprensa nipo-brasileira por ter aclimatado o haiku para o  haicai, sistematizando a prática no Brasil.

Em 1987, ele se juntou a outros praticantes nisseis e fundou o Grêmio Haicai Ipê, ativo até hoje. Lá nasceu a primeira associação de prática e estudo de haicais em língua portuguesa, orientada por ele. O grupo inspirou a criação de demais grêmios haicaístas,  enquanto o gênero encontrava formas de se moldar ao Brasil. Por difundir internacionalmente o haicai, em 2004, Goga recebeu o  prêmio japonês “Masaoka Shiki International Haiku Prize”. O  entusiasta da poesia e da natureza faleceu em 2008, porém deixou  como legado a base para o haicai tradicional brasileiro.

O livro apresenta ainda haicais escritos por membros do Grêmio Haicai Ipê que, em sua diversidade de poemas têm como ponto de unidade “recortes do cotidiano”, ou seja, a simplicidade do haicai  abrigando infinitas possibilidades de percepções de um instante. Por isso, o livro ultrapassa a sua intenção de homenagem e de instigação dos leitores a adentrarem o universo haicaísta, mostrando também a sua contemporaneidade em tempos nos quais nossas mensagens virtuais sobre o dia-a-dia concentram-se em 140  caracteres usados em redes sociais como o Twitter.

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