Feminismo e a genealogia que me permitiu existir

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estou
no topo dos sacrifícios
de milhões de mulheres antes de mim

a pensar
que posso fazer
para tornar mais alta esta montanha

para que as mulheres depois de mim
possam ver mais longe

– herança, Rupi Kaur

Cada 8 de março traz para mim uma reflexão nova, algo que me escapou no ano anterior e um reflexo do que consegui aprender até aqui. Falar de feminismo, do meu feminismo, do que me foi possível e acessível é fácil. Eu posso abordar diferentes temáticas e reivindicar direitos. Eu estou em uma posição – social e também racial – que me permite isso. No entanto, para que isso me fosse permitido, para que eu pudesse existir tal qual como sou, houve alguém antes de mim. Alguéns. Porque antes de mim, vieram muitas. Mulheres diversas, que em sua maioria desconheciam o feminismo como termo, mas o conheciam como luta mesmo sem saber que o praticavam. Essa é a minha genealogia e é o que me possibilitou estar aqui.

Genealogia. Um termo que por muito tempo me remeteu a n assuntos, mas que nunca o conectei de fato a mim mesma. Até ter uma aula a respeito disso. E até ler Em busca dos jardins de nossas mães: Prosa mulherista , de Alice Walker. De maneira simplista, genealogia estuda a origem e a dispersão das famílias. De onde veio quem e para onde foi. Uma genealogia feminista, no entanto, vai além. Ela visa redescobrir mulheres apagadas pelo curso da história, mulheres esquecidas e perdidas. É uma maneira de reconstruirmos a nossa história tendo como narradoras nós mesmas, trazendo de volta para a nossa fala algo que foi contado por meio de um viés masculino por muitos anos.

Para que a Sttela pudesse existir e lutar, a Claudia precisou se fortificar, engolir, ceder e se ajustar. A Cleusa precisou perdurar, a Vera precisou enfrentar – e quebrar – tabus, a Eugênia precisou endurecer, a Maria Amália teve que se submeter. A Maria precisou costurar e a Aurora tolerar. Algumas trabalharam fora, tiveram filhos de pais diferentes, não casaram. Outras tiveram maridos alcóolatras, violentos, ficaram só. Parte delas deixou alguns sonhos para trás, mal cumpridos e não realizados e outra fez o que podia, da melhor maneira que conseguiria, para que a vida pudesse acontecer. Para que essa linhagem existisse e chegasse até mim. Para que eu pudesse encontrar a minha voz e tivesse a possibilidade de utiliza-la.

Então, nesse 8 de março, eu não penso somente das problemáticas de agora. Nas inúmeras questões a resolver e em como precisamos caminhar muito ainda. Hoje, eu penso nelas. Em todas elas. As que eu não pude libertar, mas que cederam um pouco de si para que eu fosse livre. Hoje, eu reflito sobre a dor que viveram, mas a coragem que tiveram. Como elas forjaram mão o corpo que me reveste e luta para que as próximas, as que vierem depois de mim, sejam melhores, mais fortes, prontas para a luta.

Eis, então, que volto ao meu velho questionamento: para quem é o teu feminismo? O teu feminismo seria para elas? A sua avó o entenderia? Quem ele abraçaria? Sou fruto de sonhos que as minhas ancestrais talvez nem cogitaram ter. Sou pedaços de vitórias e derrotas de rostos e nomes que sequer conheci. Somos. Quem são elas? Quem foram? Mais do que a luta em frente, é preciso resgatar a luta que foi. E digo isso não somente a respeito de grandes nomes que foram apagados no curso da existência. Falo sobre aqueles que ninguém conhece. Aqueles que só você, que veio deles, consegue compreender. Sei que nem todos são possíveis de se resgatar. Algumas se perderam, outras foram arrancadas de nós. Mas a que você puder, quando puder, traga à luz.

Agradeço às teóricas, historiadoras, pensadoras, ativistas. Mas agradeço também a quem nada sabia, a quem pouco conhecia. Agradeço a quem ler era privilégio, a quem estudar foi negado ou limitado, a quem desbravou as lutas do dia a dia sem conseguir refletir a respeito delas. Agradeço a Claudia, a Cleusa, a Vera, a Maria, a Eugênia. Eu aprendo e desaprendo constantemente, me desmonto e desfaço por aqui, mas sem elas, ah, sem elas eu não poderia sequer chegar a existir.

E você? A quem agradece? Qual a sua genealogia?

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