Como uma fênix: a história de vida dos “hibakusha”

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Como uma fênix | Serendipitys
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Image by: Sandra Lazaro

Por Heloísa Guedes

A expressão “hibakusha” foi usada preconceituosamente para designar aqueles que foram vitimados pela explosão da bomba atômica lançada em 1945 nas cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki pelos norte-americanos. E é a trajetória de vida dessas pessoas que o jornalista John Hersey retrata no romance-reportagem Hiroshima. Em 1946, como repórter da revista The New Yorker, ele realizou uma matéria sobre a catástrofe de Hiroshima. Sucesso incontestável na época, o jornalista levou seis semanas escrevendo essa reportagem que se completou e se transformou em livro a partir de seu reencontro, quatro décadas depois, com os mesmos sobreviventes entrevistados em sua primeira visita.

O repórter concentra as atenções nas entrevistas de seis pessoas que contam os pormenores de sua vida antes e depois da tragédia que se abateu. Entre eles, dois médicos: Masakazu Fujii e Terufumi Sasaki. O primeiro, mais velho e pai da família na época da bomba, estava em sua clínica no momento da explosão, enquanto o outro, ainda rapaz, executava um teste laboratorial no hospital em que trabalhava. Foram entrevistados também o padre alemão Wilhelm Kleinsorge, de 38 anos, que vivia no Japão, e o reverendo Kiyoshi Tanimoto. Este, assim como o Kleinsorge, estava distante do centro da explosão quando ela ocorreu. E, finalmente, há as entrevistas da então jovem em 1945, Toshiko Sasaki e da esposa viúva, mãe de três filhos, Hatsuyo Nakamura.

Desses personagens são extraídos o tema e o enredo da narrativa de Hiroshima. O ponto de unidade entre todos os assuntos abordados é a bomba que vitimou a todos os personagens, presentes nos cinco capítulos da obra. O capítulo inicial traz o flash-back revelador de um panorama de como era a vida de cada um dos seis sobreviventes até o momento da explosão, No capítulo cinco, esse mesmos personagens têm seus desfechos contados separadamente. O livro segue então uma estrutura informacional na sua divisão, mas sem deixar de enveredar para a vertente literária.

O caráter equilibrado de romance-reportagem é mantido. Não houve a necessidade de recorrer a sofisticados recursos literários; estes são supridos pelas próprias emoções dos seis sobreviventes da bomba atômica. O desenrolar de suas vidas e o turbilhão de sentimentos nascentes depois da tragédia dominam a estrutura narrativa, muito embora o tempo obedeça à cronologia. A emoção flui do início ao fim do livro e inevitavelmente o leitor sensibiliza-se a ponto de conseguir transportar-se ao local da explosão, talvez imaginando como a sua vida teria sido se houvesse enfrentado o mesmo trauma.

Aqueles que sobreviveram estavam esgotados fisicamente e emocionalmente a ponto de não terem se dado conta de imediato de que eles haviam sido objeto da primeira grande experiência com energia atômica- responsável pela morte de mais 100 mil pessoas. Próximo à década de 50, a sociedade pouco sabia das reais implicações da bomba na vida dos japoneses e com os depoimentos coletados pelo jornalista isso vem à tona. Se às vítimas faltava até mesmo expressão para tentar explicar como a explosão impactou suas vidas, como os próprios entrevistados confessaram, em Hiroshima Hersey se esforça para detalhar aquilo que o curto espaço de tempo impossibilitou de ser compreendido.

 Prezando pela polifonia, o autor opta pela inserção de diversos pontos de vistas. Captá-los, para então expô-los em forma de romance-reportagem, só foi possível pelo exercício de uma apuração minuciosa dos fatos. Ou melhor, do além dos fatos; do intrínseco. De Hersey foi necessária a paciência e observação aguçada para ver aquilo que transcende o palpável e visível referente às ruínas materiais da destruição. Sem esse tipo de apuração, o livro certamente não adquiriria tamanha densidade e seu reconhecimento como clássico da hibridização dos gêneros literário e jornalístico. Ele precisou perscrutar os mais diversos sentimentos que acompanharam os seis entrevistados durante o desenrolar dos fatos.

Esses sentimentos mostram-se contrários àqueles que o leitor, possivelmente chocado com a tamanha crueldade que a bomba atômica causou, pode pensar. Mesmo quarenta anos depois, estas pessoas mostraram não guardar rancor dos norte-americanos. Pelo contrário, seus discursos exibem perspectivas inesperadas e uma nova atribuição de valores à vida. Além disso, em todas as suas ações, as boas maneiras nunca foram esquecidas, ainda que em meio a um desespero em colaborar com os feridos e provar àqueles que queriam ser deixados ao relento, aguardando a morte, que havia algum motivo para retomarem a vida. Os que morriam, o faziam silenciosamente pela pátria – ou, no máximo, cantando o hino nacional- e orgulhavam-se em perder a vida pelo imperador.

Sem dúvida, John Hersey lança seu olhar não sobre aquilo que irreversivelmente estava arruinado, mas sobre a força humana que reconstruiu a vida e cidade desses “hibakushas”, como uma Fênix- pássaro da mitologia grega que renascia das próprias cinzas. As únicas cinzas japonesas que possibilitaram o renascimento desse povo, que não raramente necessita reformular suas vidas em função de até mesmo fenômenos naturais, foram aquelas vindas do encontro com o próprio interior. Este requer a disciplina e serenidade que parece já estar na essência de um Japão que sabe sofrer e renascer como nenhuma outra nação. Em Hiroshima, pode-se perceber que a resposta esteve sempre dentro deles e essa foi a única matéria-prima de que dispunham para reerguer o sopro de vida que felizmente lhes sobrara.

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